Engenharia reversa de emulsões e o nocaute de produtos da concorrência

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No laboratório, os formuladores de produtos cosméticos muito comumente são inquiridos a copiar ou melhorar a formulação de um produto já disponível do mercado. Às vezes, a demanda pede um produto que seja o mais semelhante possível ao benchmark (isto é, o referencial do mercado). Outras vezes, demanda-se um produto que seja parecido, mas que contenha um ou outro ingrediente em particular que o produto de referência não contém. Por fim, há também casos em que se procura obter um produto que não necessariamente precisa ter composição parecida, mas que deve ter desempenho igual ou, preferencialmente, melhor (o nocaute!). Os contratipos são exemplos de produtos que abertamente surgem da prática da engenharia reversa.

Pra começar, os formuladores precisam aceitar que é praticamente impossível reproduzir uma formulação de modo absoluto. Diferenças de fragrâncias ou de fornecedores de ingredientes e a própria limitação da lista de ingredientes do produto tornam este trabalho bastante utópico. A boa notícia é que na maioria dos casos não se deseja uma formulação exatamente igual. Muitas vezes, o objetivo é usar a fragrância padrão da marca ou os ingredientes ativos da família de produtos da qual a sua cópia fará parte, entre outros propósitos.

Passo 1 – Definir os objetivos do projeto

É imprescindível que o(a) formulador(a) compreenda os objetivos do projeto para que possa coordenar suas atividades com a verdadeira intenção do marketing ou dos responsáveis pela demanda. Tenha a certeza de esclarecer quais são as características mais importantes do benchmark que devem aparecer também na cópia, e quais as que podem ser substituídas. Já que não há como reproduzir exatamente a mesma coisa, esta flexibilidade na hora de formular é muito importante para negociar o andamento do projeto!

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Passo 2 – Adquirir e experimentar o produto de referência

Se o objetivo é reproduzir uma formulação, é preciso que o(a) formulador(a) conheça o produto que quer copiar e esteja ciente de seus atributos e desempenho. É preciso experimentar o produto do ponto de vista do(a) consumidor(a), a fim de entender os benefícios e os diferenciais que fazem o benchmark ser um sucesso. Tome nota da experiência e das sensações que você percebeu ao utilizar o produto, para que possa averiguar se a sua cópia resultará em algo similar. Uma vez que você tirou as suas próprias conclusões sobre o produto, convém verificar o que as outras pessoas pensam sobre ele (veja o passo 3). No entanto, é recomendado fazer sua própria avaliação antes de se deixar influenciar pela opinião de outros consumidores!

Passo 3 – Coletar informações sobre o produto de referência

Depois disso, convém conhecer o máximo possível sobre o produto que se pretende copiar.

A lista de ingredientes é uma das principais informações que se pode obter. A partir dela, é possível estimar com um pouco mais de fundamento quais são os componentes mais importantes da fórmula. Em muitos países, como no Brasil e nos EUA, a lista de ingredientes é apresentada em ordem decrescente de proporção na fórmula. Portanto, os primeiros ingredientes tendem a estar presente em maior quantidade. Em muitos casos, a maioria dos ingredientes está presente em quantidades muito pequenas (menos de 1%), de modo que tais ingredientes desempenham um papel secundário quando o objetivo é copiar o produto. Por exemplo, alguns componentes de fragrâncias como “Linalool” e “Limonene” são obrigatoriamente listados, mesmo que presentes em quantidades traços, devido a seu potencial alergênico para algumas pessoas.

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Contudo, os formuladores precisam estar atentos! No Brasil, a lista de ingredientes é apresentada conforme o “nome INCI” do componente, isto é, a Nomenclatura Internacional de Ingredientes Cosméticos (INCI). Mas nem sempre o nome INCI revela toda a informação necessária. Por exemplo, o nome INCI “Sorbitol”, que se refere a um agente umectante, não revela se tal ingrediente foi utilizado na forma sólida ou diluída em água. Além disso, diferentes fornecedores podem usar o mesmo nome INCI, mas ter produtos com características sensoriais ou físico-químicas diferentes (pureza, viscosidade etc.). Apesar das limitações, a lista de ingredientes ainda é uma das maiores fontes de informação à disposição dos formuladores (e dos consumidores!). Com o tempo e a prática, os formuladores tornam-se mais aptos a interpretarem a lista de ingredientes com mais eficiência.

Outra fonte de informação bastante útil, mas nem sempre fácil de se identificar são os pedidos de patente publicados. Os documentos de patente trazem mais informações que a mera lista de ingredientes e muitas vezes revelam o nome comercial do ingrediente que foi utilizado na formulação. Além de trazerem mais detalhes sobre o processo de fabricação do produto. Vale a pena fazer uma busca gratuita em plataformas como o INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), o USPTO (Escritório de Marcas e Patentes dos Estados Unidos) e o Espacenet. Neste texto aqui, o Cosmética em Foco relaciona um produto do mercado brasileiro com o seu provável pedido de patente.

Como foi mencionado no Passo 2, convém saber também o que os outros consumidores pensam sobre o produto de referência. Perguntar diretamente aos consumidores ou convidá-los para participar de grupos focais e painéis de análise sensorial  são ideias interessantes, mas custam mais caro. Uma ferramenta barata é a netnografia, em que se pesquisa a opinião do consumidor a partir de material disponível na internet. As lojas virtuais de produtos cosméticos deixam um espaço para que os clientes comentem suas experiências com os produtos adquiridos. Na verdade, esses comentários são uma fonte riquíssima de informação sobre o comportamento do consumidor e podem auxiliar o(a) formulador(a) a compreender melhor o benchmark.

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Um último exemplo de fonte de informações sobre os produtos e ingredientes disponíveis no mercado são os fornecedores de matéria-prima e, principalmente, os vendedores que visitam os formuladores para oferecer novos ingredientes. Da mesma maneira que os vendedores visitam você para tentar descobrir alguma informação sobre o que você precisa, eles também recebem informações sobre o que outras empresas estão fazendo. Portanto, já que eles vão se esforçar para especular o seu projeto, nada mais justo que você também especule o que eles têm ouvido por aí. Tudo depende da sua capacidade de persuasão e da qualidade da relação entre as partes.

Passo 4 – Analisar o produto de referência

Além de arte, o desenvolvimento de cosméticos é também uma ciência. Logo, nada mais natural que recorrer aos instrumentos de laboratório para adquirir mais informações sobre o produto de referência. É claro que a quantidade de informações que se pode coletar vai depender da infraestrutura disponível, mas três itens são básicos e muito importantes: o teor de água, a viscosidade e o pH da formulação. O pH e a viscosidade são facilmente determinados em aparelhos comumente encontrados em um laboratório de desenvolvimento de cosméticos. O teor de água pode ser obtido em estufa até peso constante ou com um equipamento de titulação de Karl Fisher. Lembre-se, no entanto, que o teor de água obtido na análise inclui não só a água adicionada à formulação, mas também a água usada pelos fabricantes para diluir seus ingredientes (por exemplo: extratos vegetais, polímeros, pré-misturas etc.). De qualquer forma, esta informação é bastante valiosa para direcionar os formuladores.

No caso de emulsões com alto teor de minerais, como as bases e os cremes tonalizantes, pode-se recorrer à boa e velha clássica “mufla” para se determinar o teor de cinzas e ter uma ideia da quantidade de sal, óxidos metálicos e/ou sílica, entre outros minerais, presentes na fórmula. É possível também obter informações mais precisas em equipamentos mais sofisticados, como o Cromatógrafo Gasoso, o Cromatógrafo Líquido de Alta-Eficiência e o Calorímetro de Varredura Diferencial. Mas esses recursos nem sempre estão disponíveis..

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Passo 5 – Selecionar e priorizar os ingredientes

Uma vez compreendida a lista de ingredientes e a provável função de cada componente na fórmula, o(a) formulador(a) deve estimar quais os ingredientes que provavelmente estão relacionados com o aspecto que se pretende copiar. Idealmente, ao menos esses ingredientes seriam iguais ao produto de referência. Como nem sempre é possível obter exatamente as mesmas matérias-primas, é preciso supor quais serão imprescindíveis e quais poderão ser substituídas. A maioria daqueles ingredientes do fim da lista (baixa concentração!) tem pouco impacto nos aspectos sensoriais e físico-químicos, mas podem ser importantes para a estabilidade, a eficácia e a segurança do produto.

Passo 6 – Criar, experimentar e analisar os seus protótipos

Após definidos os ingredientes que farão parte da cópia, é preciso colocar a formulação no papel e por as mãos à obra. O procedimento deve seguir os princípios básicos da arte, isto é, as tradicionais técnicas de obtenção de uma emulsão, respeitando-se as recomendações dos fornecedores das matérias-primas.

Com os protótipos prontos, o(a) formulador(a) deve partir para uma nova experimentação e averiguar quais as fórmulas que se mostraram mais satisfatórias, de acordo com os objetivos do projeto (e tomando como base as anotações do passo 2!).
Em seguida, os protótipos são também analisados em laboratório para que se possa averiguar que os parâmetros básicos (pH, viscosidade, estabilidade, sensorial etc.) são aceitáveis, em relação ao benchmark.

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Passo 7 – Testar os protótipos com consumidores

Enfim, o(s) melhor(es) protótipos precisam passar pela prova de fogo, ou seja, a opinião de um grupo maior de consumidores. Como já mencionado, a análise sensorial com painéis de consumidores ou avaliadores treinados pode ser muito útil nesta etapa (entenda melhor aqui). Esta etapa é determinante para o sucesso do projeto e pode trazer muitas inspirações para a melhoria dos protótipos.

Este passo a passo não tem o propósito de ser exaustivo ou restritivo, mas pode conter dicas valiosas para os formuladores que se depararem com um projeto deste gênero. E você? Tem alguma dica pra quem precisa nocautear um produto de referência? Compartilhe com a nossa comunidade nos comentários!

Até a próxima!

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Referências:
BAREL, A. O.; PAYE, M.; MAIBACH, H. I. (Ed.). Handbook of cosmetic science and technology. 3rd. ed. New York: Informa Healthcare, 2009.
Brains Publishing
Marketing Review St. Gallen, 2011.
PRISTA, L. N. et al. Tecnologia Farmacêutica. Vol. 1. 7. ed. Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 2008. cap. 8.

Por Ivan Souza

Coordenador de Conteúdo. Farmacêutico Industrial pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). MBA em Gestão Empresarial (UEM). Doutor em Ciências pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP). Experiência em pesquisa e desenvolvimento de inovações no setor cosmético e farmacêutico.

4 comentários

  1. Os textos do site são muito bons e os conteúdos muito educativos.
    Curso Tecnologia em Cosméticos e sentia falta de encontrar informações que não estejam sempre ligadas a conceitos técnicos farmacêuticos.
    Parabéns pela página!

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