Formulando com mínima infraestrutura e orçamento

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Criar novos cosméticos é uma combinação de arte e ciência. Como arte, é uma atividade que muitos de nós formuladores acha estimulante e apaixonante. Como ciência, requer que a qualidade do produto desenvolvido seja testada e confirmada por meio de métodos experimentais.

É muito agradável formular cosméticos quando se dispõe de um laboratório bem equipado, com toda a infraestrutura e a instrumentação necessárias para confirmar a qualidade dos nossos protótipos, por ex.: centrífuga, câmara climática, microscópio, pHmetro, colorímetro, viscosímetro, reômetro, texturômetro, cromatógrafo, e até mesmo um laboratório de microbiologia anexo. Infelizmente, a maioria das empresas cosméticas no Brasil (e possivelmente em todos os países!) não dispõem de todos esses recursos ao mesmo tempo. E se estivermos falando de um microempreendedor tentando começar sua marca própria, a disponibilidade de recursos é ainda mais limitada (1) .

Os custos de formulação e desenvolvimento de cosméticos podem ser reduzidos significativamente empregando-se instrumentação e métodos criativos.
Foto: Stuart Miles / FreeDigitalPhotos.netTexto

Se economizar no laboratório lhe interessa, saiba que abaixo sugerimos métodos experimentais alternativos que podem auxiliar no desenvolvimento e controle de qualidade de formulações quando contamos com um orçamento limitado. Essas sugestões não são adequadas para substituir métodos determinados em legislações e regulamentações específicas. Mas na grande maioria dos casos, as regulamentações não estabelecem procedimentos específicos, e é possível utilizar métodos alternativos aos chamados ‘padrões ouro’, especialmente se for realizado um estudo de validação da alternativa.

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Além disso, as sugestões abaixo podem não ser as mais adequadas para o controle de qualidade de um lote de produção que se destina à comercialização, mas podem ser bastante úteis para reduzir custos no processo de seleção dos melhores protótipos durante a fase de desenvolvimento.

Testes de Estabilidade Preliminar

Estudos de pré-estabilidade podem reduzir muito os custos de formulação, pois eliminam logo cedo aqueles protótipos mais instáveis que certamente não serão aprovados em um estudo de estabilidade acelerada. Alguns dos instrumentos mais utilizados nesta etapa são a centrífuga e a câmara de gelo/degelo controlado.

Centrífugas são consideravelmente mais acessíveis que outros instrumentos citados aqui (considere, por exemplo, o custo de um reômetro!), e também são difíceis de se substituir com segurança. Então, pode valer a pena o investimento, já que permitem descartar rapidamente as emulsões que tendem a separar fases, poupando vários dias de trabalho. Mas para os mais aventureiros e amantes da tendência ‘faça você mesmo’, a internet está repleta de vídeos descrevendo engenhos de centrífugas caseiras, adaptadas a partir de ventiladores, motores de videocassete etc.

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Quanto ao teste de gelo/degelo, câmaras climáticas programáveis com ajuste de temperatura progressivo aumentam a eficiência do laboratório, mas também custam muito caro. Portanto, pode valer a pena recorrer ao bom e velho método de transferir a amostra de um congelador para uma estufa, em intervalos de tempo precisos e controlados (ex.: 12 h no congelador / 12 h na estufa). E se uma estufa de laboratório não estiver prontamente disponível, pode-se encontrar na internet diversos modelos de estufas caseiras, feitas a partir de uma caixa de isopor ou madeira, aquecida por uma lâmpada incandescente. O isopor ou a madeira conseguem reter o calor, e em alguns casos é possível atingir temperaturas entre 40-60°C. Se optar por uma estufa caseira, convém usar um termômetro para manter um registro diário da variação de temperatura no interior da caixa.

Em condições adequadas, direcionar uma ponteira laser através de uma fina camada de formulação emite projeções que permitem explorar o visual microscópico da amostra.
Foto: rakratchada torsap / FreeDigitalPhotos.net

Testes de Estabilidade Acelerada

Estudos de estabilidade acelerada consistem no acompanhamento de parâmetros organolépticos e físico-químicos ao longo de alguns meses, para se predizer um prazo de validade. A seguir, vamos listar diferentes análises comumente realizadas neste tipo de estudo, e sugerir métodos alternativos de menor custo para substituir equipamentos sofisticados.

visual microscópico

É muito comum observar a evolução do tamanho das gotículas de um creme ou emulsão com o passar do tempo para antever problemas de estabilidade, como cremeação ou separação de fases. Este estudo normalmente é feito com o auxílio de um microscópio ótico, e o propósito é observar se haverá aumento do tamanho ou aglomeração das gotículas da emulsão, o que indica potencial instabilidade. Um microscópio é uma excelente adição para um laboratório de desenvolvimento, mas pode não ser a maior prioridade dos formuladores.

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Neste caso, é possível improvisar um microscópio utilizando itens como peças de Lego, uma seringa ou lâmina de vidro, e uma ponteira laser (2), além de outros métodos disponíveis na internet. Esses sistemas improvisados podem não oferecer a melhor resolução, mas se bem construídos e utilizados de forma padronizada representam uma boa economia.

pH

Acompanhar a evolução do pH de uma formulação é um importante indicativo de alterações químicas imprevistas às quais os produtos estão sujeitos, especialmente quando se usa misturas complexas na formulação (por ex.: extratos vegetais, emulsificantes iônicos etc.). O desejado é um pH estável ou com pouca oscilação, e um pHmetro é a ferramenta mais conveniente para este tipo de estudo. Contudo, se um pHmetro não estiver disponível, em alguns casos é possível utilizar fitas padronizadas para medida de pH. A maioria dessas fitas tem uma exatidão de 1,0 ou 0,5 unidades de pH, mas oferecerem resultados satisfatoriamente precisos e podem auxiliar no reconhecimento de alterações de pH suficientemente significantes para afetar o equilíbrio de uma formulação. Essas fitas funcionarão bem em formulações à base de água, ou cuja fase externa seja aquosa, especialmente na ausência de corantes ou pigmentos.

cor

Alterações de cor são extremamente importantes de se verificar em um estudo de estabilidade, pois são facilmente percebidas pelo consumidor. Diversos modelos de instrumentos para medição de cor estão disponível no mercado e grande parte deles utiliza-se do sistema de coordenadas de cores L* a* b*. Basicamente, esses colorímetros tentam traduzir a absorbância de luz de uma amostra em números que expressam uma certa correlação com a nossa percepção visual das cores. Esses equipamentos surgiram para fornecer maior padronização e precisão, se comparados a indivíduos classificando as cores a olho nu. No entanto, quem teve a oportunidade de trabalhar com colorímetros sabe que, às vezes, é bastante desafiante obter a reprodutibilidade desejada (3).

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A roda de cores pode ser usada como um ferramenta para aumentar a precisão de repostas entre analistas diferentes.
Foto: Cosmética em Foco

Logo, se um colorímetro não estiver disponível, é possível tornar a determinação de cores mais padronizada ao se comparar a cor da amostra com uma escala padrão de tonalidades de cor. O erro humano ainda estará presente neste tipo de análise, e uma maneira de diluir este erro é por meio de um painel treinado de analistas. Contudo, utilizar uma escala padrão de cores (como a roda de cores na figura) já é um meio de tornar as respostas mais homogêneas entre analistas diferentes, e pode aumentar a reprodutibilidade sem incidir em maiores custos.

odor

O cheiro de uma formulação é uma das características mais importantes para conquistar o consumidor. Uns preferem produtos sem fragrância, outros são fiéis ao mesmo produto justamente por causa de seu perfume favorito. Logo, garantir um odor constante durante todo o prazo de validade é importante para satisfazer a expectativa dos consumidores. Alterações de odor também podem ser indicativos de problemas de estabilidade, como perda de fragrância, lixiviação de embalagem, oxidação, rancificação, e crescimento microbiano. Mas nem toda alteração de odor será inaceitável.

Classificar um odor é muito mais complexo do que classificar uma cor (4). Olfatômetros ou narizes eletrônicos são instrumentos que procuram simular a capacidade do nariz humano de detectar odores. No entanto, estes instrumentos são mais eficazes em identificar e quantificar substâncias odoríferas do que em interpretá-las, pois o nariz humano é muito mais sensível e complexo (5). E já que os olfatômetros são mais seletivos que o nariz biológico (5), por vezes eles indicam alterações de odor que acabam não sendo significativas para o consumidor. Portanto, os testes conduzidos por estes instrumentos são comumente revalidados por um painel de analistas treinados.

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Olfatômetros, aparelhos de cromatografia gasosa, bem como um painel de analistas treinados são métodos de análise de odor significativamente caros. Assim, quando se conta com um orçamento limitado, a solução é recorrer a um analista ou grupo de analistas minimamente treinado(s). Para reduzir a subjetividade, é possível comparar a amostra com ‘padrões de cheiro’, especialmente se a formulação contém fragrâncias. Além disso, uma descrição detalhada das características e variações do cheiro ao longo do tempo, pode ser mais eficiente em se estabelecer uma homogeneidade de resposta do que anotar simplesmente ‘odor característico’. Por fim, utilizar uma escala de ‘agradabilidade’ do cheiro para classificar a variação de odor pode se mostrar mais reprodutível que outros métodos (4).

tato

A textura de uma base, creme, ou loção é outro fator bastante importante para conquistar o consumidor. É preciso garantir que essa textura seja semelhante ao longo de todo o prazo de validade. Um dos parâmetros analíticos mais comumente relacionado com o modo como percebemos a textura de uma formulação é a viscosidade. Um viscosímetro é uma ferramenta muito útil e prática para determinar a viscosidade dinâmica de uma fórmula, e outras características reológicas podem ser observadas com a adição de instrumentos como o reômetro e o texturômetro. Contudo, esses instrumentos são bastante caros e podem ser inacessíveis para alguns formuladores. Neste caso, pode-se recorrer a instrumentos mais econômicos para se determinar a viscosidade, como o copo Ford ou o método da esfera rolante.

O copo Ford associa o tempo de escoamento de uma amostra com a sua viscosidade, permitindo o cálculo da viscosidade cinemática (6), que pode ser matematicamente convertida em viscosidade dinâmica. É particularmente eficiente para formulações líquidas ou semissólidas de baixa viscosidade, em geral 6000 cP ou menor, como xampus e sabonetes líquidos. Já o método da esfera rolante é mais apropriado para formulações de maior viscosidade, que não escoam tão facilmente. Este método permite determinar a viscosidade dinâmica utilizando-se uma proveta graduada, uma esfera de aço ou mármore, um cronômetro, uma régua e uma balança (7). Basicamente, adiciona-se a amostra na proveta e determina-se a velocidade da esfera ao percorrer a amostra sob a força da gravidade, tendo em conta a densidade da amostra e da esfera (7). Ambos os métodos oferecem resultados bastante satisfatórios se realizados de forma padronizada.

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contagem microbiana

Mais que uma questão de satisfação do consumidor, a contagem microbiana é imprescindível para garantir a segurança do produto e atender aos requisitos sanitários. No entanto, manter um laboratório de microbiologia interno ou contratar um laboratório prestador de serviços, especialmente para os fins de desenvolvimento de produto, representa um custo muito alto. Logo, pode ser mais eficiente utilizar kits de meios de cultura prontos para uso (como o mostrado na figura). Esses kits permitem identificar o crescimento de bactérias totais, fungos e mofos, e alguns fabricantes oferecem kits com meios específicos para enterobactérias (coliformes). Conhecimentos básicos de microbiologia são bastante relevantes para garantir o uso eficaz desses kits, e sua implementação ajuda a eliminar formulações ou combinações de conservantes menos eficazes, evitando submetê-las a testes mais caros.

Kits prontos para uso facilitam a contagem microbiana e podem ser mais econômicos que manter um laboratório de microbiologia.
Foto: Cosmética em Foco

Considerações importantes

Esta abordagem ‘MacGyver’ de formulação (os millenials que não fazem ideia de quem eu esteja falando podem clicar aqui!), requer um(a) profissional treinado(a) em controle de qualidade ou formulação que seja capaz de entender as implicações e a ciência por trás dos métodos alternativos citados aqui.

Equipamentos sofisticados podem ser caros, mas também passam por uma rigorosa padronização, e geralmente poupam tempo, além de minimizarem o erro humano. As soluções criativas listadas aqui são mais econômicas, mas também tem suas limitações, as quais muitas vezes podem ser resolvidas com padronização e validação.

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Você já testou algum desses métodos? Conhece ou criou métodos diferentes? Compartilhe sua estória conosco nos comentários!

Referências:

(1) SOUZA, I. D. S. Prospecção no setor cosmético de cuidados com a pele: inovação e visão nas micro, pequenas e médias empresas. 2015. 459f. Tese (Doutorado). Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2015.

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(2) PLANINSIC, G. Water-drop projector. The Physics Teacher, v. 39, p. 18-21, fev. 2001. Acesso em: 28 fev. 2019.

(3) MATIAS, A. R.; et al. Skin colour, skin redness and melanin biometric measurements: comparison study between Antera® 3D, Mexameter® and Colorimeter®. Skin Res. & Tech., v. 21, n. 3, p. 346-362, Ago. 2015.

(4) KAEPPLER, K.; MUELLER, F. Odor classification: a review of factors influencing perception-based odor arrangements. Chem. Senses, v. 38, p. 189-209, mar. 2013.

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(5) LISBOA, H. M. et al. Gestão de odores: fundamentos do Nariz Eletrônico. Eng. Sanit. Ambient. , v. 14, n. 1, p. 9-18, jan./mar. 2009.

(6) FUJIWARA, G. M. et al. Avaliação de diversas formulações de xampus de cetoconazol quanto ao emprego de diferentes antioxidantes e solubilizantes. Visão Acad., v. 10, n. 2, p. 43-57, jul./dez. 2009.

(7) RUFF, B. How to measure viscosity. Acesso em: 05 Mar. 2019.

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Por Ivan Souza

Coordenador de Conteúdo. Farmacêutico Industrial pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). MBA em Gestão Empresarial (UEM). Doutor em Ciências pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP). Experiência em pesquisa e desenvolvimento de inovações no setor cosmético e farmacêutico.