Numa bela manhã de primavera, aqui na Filadélfia, ensolarada mas também gélida, eu segui a minha rotina. Levantei, preparei-me para ir ao trabalho e durante o café da manhã algo me chamou atenção: um rótulo de iogurte (na verdade, skyr cremoso!). Nada inusitado, pois já havia provado e se tornara um de meus favoritos. Mas desta vez eu o encarei com olhos diferentes. Encarei com os olhos da curiosidade de cientista e resolvi explorar o rótulo mais a fundo.
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O fabricante clama que não há nada de artificial em seus produtos e, automaticamente, fui conferir a lista de ingredientes:
Leite Desnatado Pasteurizado, Creme de Leite Pasteurizado, Coco, Açúcar de cana, Pectina de Fruta, Suco de Limão, Culturas Ativas Viáveis (S. thermophillus, L. delbrueckii subsp. bulgaricus, B. lactis, L. acidophillus, L. delbrueckii subsp. lactis).
Acho impressionante como a lista de ingredientes deste alimento é muito mais fácil de se ler que a lista de ingredientes de um produto cosmético. Mas isso, é claro, não é uma preocupação originalmente minha. Existe uma vertente de consumidores que tem feito esta reflexão muito antes de eu começar a trabalhar com cosméticos. Porém, desta vez, eu acho que passei mais tempo pensando sobre isso porque a lista de ingredientes acima não está tão distante da realidade de um produto cosmético industrializado. Reflita comigo nos próximos parágrafos!
Primeiro, alguns dos ingredientes da lista acima já são utilizados em cosméticos de alguma forma. O mais evidente é a pectina de frutas, também chamada de pectina cítrica (INCI: Pectin), que pode ser usada como agente espessante. O suco de limão é rico em ácido cítrico (INCI: Citric Acid), muito usado em cosméticos para regular o pH da formulação. Neste caso, o suco de limão cumpre uma função semelhante, ajustando o skyr no pH ideal para a fermentação pela cultura de bactérias. A casca de coco já é usada como partícula esfoliante, assim como o açúcar… e nada impede que o pó da polpa de coco seja utilizado como agente texturizante! Muitas “farinhas” já são usadas como texturizantes, por ex.: a tapioca, o amido de milho etc. Embora não muito convencional, o leite já foi (e talvez ainda seja!) usado em alguns produtos cosméticos; e o creme de leite não passa de uma emulsão pré-fabricada que poderia muito bem ser incorporada na formulação de produtos de beleza… ou substituído por alguma outra manteiga de origem vegetal (lembre-se que o creme de leite é a base para a manteiga de origem animal!). Na verdade, a gente já mostrou aqui que empresas como a Lush Cosméticos têm usado ingredientes da cozinha na fabricação de cosméticos.
Outro aspecto semelhante é que este produto alimentício conta com uma série de “apelos” em seu rótulo:
Todo natural. Leite proveniente de vacas alimentadas com grama, mantidas sem hormônios de crescimento. Sem aspartame. Sem sucralose. Sem gelatina. Sem corantes artificiais. Sem conservantes. Sem xarope de milho rico em frutose. Sem glúten.
Entre os apelos, destaca-se a força daqueles do tipo “livre de…”, que também são muito comuns no mercado cosmético. Principalmente, quando se fala de conservantes! A diferença é que alimentos deste tipo são conservados em geladeira, a frio, o que lhes garante uma vida de prateleira consideravelmente maior que se fossem guardados à temperatura ambiente (de alguns dias para algumas semanas ou meses!). No caso dos cosméticos, os consumidores já estão habituados a guardar esses produtos à temperatura ambiente, em uma cômoda ou armário, de modo que os conservantes se fazem necessários. Ou pelo menos é isso a primeira coisa que se diz quando se toca neste assunto. Mas será mesmo que os consumidores não estão dispostos a guardar seus cosméticos na geladeira, em favor de um rótulo mais legível?
Fiz uma breve busca na internet e me surpreendi com o resultado. Na verdade, em alguns países como a Inglaterra e a Coréia do Sul, as pessoas já estão adquirindo o hábito de conservar seus cosméticos na geladeira independentemente de haver ou não conservantes na lista de ingredientes. Na loja virtual da Amazon encontram-se até mini-geladeiras específicas para o armazenamento de produtos cosméticos. Entre os benefícios desta prática, citam-se o aumento da resistência de lápis e de outras maquiagens; a desaceleração de reações químicas e alterações moleculares; a proteção de ingredientes ativos; a preservação da fragrância e, claro, o maior tempo de prateleira. Afinal, quando se paga mais de R$ 50,00 por um cosmético, guardá-lo na geladeira pode ser um custo adicional conveniente. Além disso, alguns medicamentos dermatológicos já são vendidos com instruções para se conservar em geladeira. Portanto, para começar a fazer isso com os cosméticos não falta muito… ou falta? Falta o quê?
Foto: Divulgação.
Talvez, falte um mercado grande o suficiente para que a indústria cosmética se interesse… Talvez, falte um movimento por parte da indústria cosmética interessada em atender a demanda dos mercados emergentes por listas de ingredientes mais simples… Ou talvez, falte um empenho por partes dos formuladores para criar novas fórmulas mais simples e reformular produtos antigos…
De qualquer maneira, é fato que produzir cosméticos com uma lista de ingredientes mais simples e que possam ser conservados em geladeira, é um pouco mais desafiador e requer mudanças no processo de formulação! Os formuladores terão que buscar ingredientes alternativos com nome INCI mais acessíveis ao público e alterar levemente suas rotinas de avaliação de estabilidade para incluir o armazenamento contínuo a frio, entre outras mudanças… Essas mudanças levam tempo, mas já são possíveis… principalmente para as pequenas e médias empresas, que normalmente são muito mais flexíveis que os gigantes da beleza!
Enfim, não vou resolver esse problema sozinho… e certamente não vou resolver este problema hoje… então, melhor ir para o trabalho e mudar o que for possível por ora…